É guerra na Europa. Não é a primeira desde 1945, como se ouve muito na imprensa chapa branca hoje em dia, porque teve a guerra sangrenta e genocida da Iugoslávia.
E além do fato, isso em si já grave e assustador, o debate tem sido tumultuado entre a esquerda com ela mesma e também a direita com ela mesma. É a primeira vez que os tons discordantes, estão colocando do mesmo lado, especificamente sobre a guerra Rússia/Ucrânia, direitistas e esquerdistas, a favor ou contra a Rússia, e que perturbam a narrativa da realidade nua e crua da guerra na Europa.
Meu posicionamento sempre foi estar do lado daqueles que se opõe e reagem a expansão do império estadunidense e que lutam contra países neonazistas/nazistas. Portanto nesse caso, a Rússia conta com parte de minha simpatia.
Mas ouso entregar-me a uma reflexão que me coloca na frente do espelho e que me questiona sobre o fundamentalismo de minhas posições a partir de uma declaração do Lula sobre a guerra na Europa.
-"Basta de guerra, queremos, paz, queremos trabalho, queremos liberdade e queremos respeito, e quem sabe a gente possa construir um mundo melhor."
Isso me faz ver no espelho que não sou apenas Rússia contra a Otan e ponto final. Não. Sei que a questão russa sobre a segurança em suas fronteiras é algo de essencial importância. Mas é bom não esquecer que a Rússia é uma ditadura capitalista, a seu modo tem uma política imperialista no Leste Europeu.
Então talvez pelo menos a esquerda brasileira tenha de encontrar uma convergência no discurso e narrativas sobre a guerra e que nos faz ser distinguidos da narrativa da direita que não está subserviente a agenda de Washington. Porque mesmo assim, é direita e direita não pensa no povo e nem nos trabalhadores. Não comungamos com eles.
Tem havido comunicados que mostram posicionamentos da esquerda em vários países.
-"Os maiores perdedores da guerra são os trabalhadores, os pobres, as mulheres e os jovens."
Comunicado de vários partidos socialistas da Turquia e do Norte do Curdistão . Os povos não têm de escolher entre a OTAN, por um lado, e a Rússia, por outro. Em vez disso, temos de estar ao lado das pessoas em todo o mundo que estão lutando na guerra.
"-Todas as nacionalidades, trabalhadores e trabalhadores de nosso país devem se unir contra a guerra, e o militarismo."
A declaração do Partido Comunista Grego segue uma linha semelhante :
-“A resposta do ponto de vista dos interesses do nosso povo não está em aderir a um ou outro pólo imperialista. O dilema não é EUA-Rússia ou OTAN-Rússia. A luta da classe trabalhadora e do povo deve traçar um caminho independente, longe de todos os planos burgueses e imperialistas”.
Esta posição tem sido manifesta de uma forma ou de outra por muitos grupos anarquistas, socialistas e comunistas em todo o mundo.
No mínimo parece coerente e adequada para os trabalhadores à primeira vista. Afinal, quem quer arriscar a vida pela classe dominante? Quem em sã consciência mataria outras pessoas de sua mesma classe social, de outras nacionalidades para as elites russa, alemã, estadunidenses ou ucraniana e pior, arriscaria a própria vida no ato de cometer esse crime?
No entanto, toda guerra precisa de soldados que estejam dispostos a lutar e a preparação ideológica correta da população.
-“A guerra é uma matança metódica, organizada e colossal. Para o assassinato sistemático, no entanto, a intoxicação apropriada deve primeiro ser gerada em pessoas comuns. Este sempre foi o método bem estabelecido dos líderes beligerantes”-. Escreveu Rosa Luxemburgo.
Toda nação guerreira diz a seus concidadãos por que eles deveriam morrer por eles em caso de dúvida. E assim uma posição contrária, simples e razoável será denunciada como uma traição à pátria, à liberdade ou à vida humana. E deve-se tornar hegemônico um mito que estimule os súditos a atos heróicos.
A guerra santa por defesa.
Um dos elementos centrais deste mito é que sempre é o adversário quem ataca. A barbárie da guerra é tão flagrante que mesmo os regimes mais reacionários assumem falsamente a narrativa da guerra como último recurso de defesa.
Quando a Alemanha entrou na Primeira Guerra Mundial, Guilherme II abriu o famoso discurso do trono de 4 de agosto de 1914 e enfatizou que era função de seu governo manter a paz por tanto tempo.
-“Durante quase meio século conseguimos permanecer no caminho da paz. As tentativas de acusar a Alemanha de inclinações bélicas e de restringir sua posição no mundo muitas vezes testaram severamente a paciência de nosso povo”,
Ou seja, aparentemente Guilherme queria evitar o “extremo” até o fim, mas agora, "em legítima defesa forçada, com a consciência limpa e as mãos limpas, pegamos a espada”.
Logo antes da Segunda Guerra, imediatamente após a transferência do poder para os nazistas, Hitler fez um discurso de paz bem recebido e alguns anos depois foi "rebatido". Lyndon B. Johnson explicou sobre a Guerra do Vietnã que os EUA estavam travando uma guerra lá contra uma "poderosa agressão" do "expansionismo comunista". E Harry S. Truman liderou as tropas americanas na Guerra da Coréia para conter a "agressão" comunista e preservar a "paz e a segurança internacionais".
Putin também vende a invasão da Ucrânia para sua própria população como um ato defensivo. Em longos discursos, ele explica a natureza preventiva de sua invasão da Ucrânia. O motivo central de suas justificativas são “aquelas ameaças fundamentais que estão sendo dirigidas de forma grosseira e descaradamente ao país russo, ano após ano, passo a passo, por políticos irresponsáveis no Ocidente. E quer dizer com isso, -"a expansão do bloco da OTAN para o leste, aproximando sua infraestrutura militar da fronteira da Rússia”, disse o autocrata russo em sua declaração de guerra de 24 de fevereiro .
Não está errado sobre as intenções dos EUA/Otan. Nesse caso há sim uma motivação. Mas já é consenso, entre os que realmente defendem a paz, que a invasão a Ucrânia foi precipitada.Não foi assim no início da invasão. Todos apoiavam uma consensual reação ao expansionismo militar europeu/norte-americano.
Mas os pensamentos juntos aos fatos vão evoluindo em teses analíticas já divergentes daquelas do início da guerra há 10 dias.
Mas isso "não é agressivo". A Rússia "não vai atacar ou explodir ninguém". Putin faz um discurso no dia em que a Rússia ataca e explode. Porque: “Com uma grande exceção. A expansão da OTAN e a incorporação formal ou informal da Ucrânia na OTAN representam um risco para a segurança do país que Moscou simplesmente não pode aceitar.”
Preparação de guerra como manutenção da paz.
Em contra partida a OTAN/EUA criam guerra de palavras e informação, antecipando a invasão da Ucrânia pela Rússia ou até mesmo a provocando, com o mesmo discurso de manutenção da paz e da tal "Ordem Global".
Essa "Ordem Global" é fundamentada na filosofia de "uma ordem internacional de paz e lei que é garantida pelo Ocidente e que se baseia na igualdade, independência e soberania. O inimigo russo veio para perseguir todos nós que vivemos felizes nesta terra de abundância, e como não temos outra escolha, também devemos agora, com a consciência tranquila, pegar em armas para nos defender. Em primeiro lugar, porque o inimigo tem armas nucleares, só pegamos em armas para as enviar aos verdadeiros defensores da Europa, os ucranianos. O que vem depois, o tempo dirá."
No caso ligaram o "foda-se".
Há de se questionar o auto engrandecimento do Ocidente, que é apresentado com grande entusiasmo, mas não resiste nem mesmo à uma observação superficial. O mundo não está em um estado pós-imperialista de amizade internacional que só seria desafiado por estados párias. Ainda é determinado pelos conflitos das potências capitalistas, às vezes realizados por meio da economia e do comércio, às vezes por tratados e diplomacia, às vezes pela ajuda ao desenvolvimento e às vezes, mas cada vez mais, por meios militares.
Os EUA, juntamente com aqueles que veem a liderança como a maneira mais segura de sustentar seu modelo de negócios, estão lutando para manter seu domínio herdado no cenário global. Outros, notadamente a China e a Rússia, veem o enfraquecimento do imperialismo norte-americano há muito tempo latente como uma oportunidade para expandir suas próprias esferas de influência. No curso dessa luta, o “Ocidente” invadiu inúmeras “nações soberanas” nas últimas décadas, apoiando golpes e usando sanções econômicas contra eles para torná-los complacentes. Só no caso do Iraque, com mais de um milhão de mortos. No Afeganistão houve algumas centenas de milhares ao longo dos anos, no Iêmen mais de um quarto de milhão. E tivemos a guerra híbrida no Brasil culminada no golpe midiático/jurídico/parlamentar de 2016, entre outras na América Latina.
E o adversário russo, mais capaz de agir “localmente”, tentou esmagar “movimentos democráticos” que lhe eram perigosos nas imediações – mais recentemente no Cazaquistão – ou preservar o regime de Assad na Síria, que era leal a ele. Na Síria em particular, a Rússia tentou outra estratégia que chegou ao fim por enquanto com a guerra atual: a integração da Turquia, que forma o flanco sul da OTAN, em sua própria política de poder imperial.
Tanto para Erdogan quanto para Putin era verdade - e isso foi praticado na Síria - que o poder hegemônico havia dado aos EUA "liberdade" para ambições independentes. Os jogadores com mais apelo regional tentaram explorar isso. Não apenas na Síria, mas também em outros pontos problemáticos – Líbia, a guerra na Armênia – o poder criativo independente dos oponentes do imperialismo norte-americano aumentou gradualmente.
Mas diferente na Europa Oriental. A expansão da OTAN para o leste é obviamente dirigida contra a Rússia (e, a longo prazo, a China), qualquer um que agora esteja negando isso por alguma alucinação precisa apenas ler os documentos de estratégia da própria OTAN. E por que mais ela ainda existe?
Putin rapidamente deixou claro qual seria a resposta da Rússia: apoio à insurgência armada no leste da Ucrânia, anexação da Crimeia. O Ocidente rapidamente deixou claro qual seria sua resposta: fortalecimento dos laços com o Ocidente, perspectivas de adesão à UE e à OTAN, entregas de armas, missões de treinamento, cooperação econômica, acordos comerciais, exercícios militares conjuntos. Ambos os blocos estavam puxando a Ucrânia – taxar isso como “autodeterminação” dos povos, independentemente de qual lado, julga mal todas as dinâmicas de poder político.
Como os Russos não blefam e não estão afeitos a esta prática, depois das cutucadas da Europa e dos EUA no Urso eslavo, inciou-se então a guerra de agressão russa.
A maioria dos observadores teria previsto o reconhecimento das "Repúblicas Populares" como um passo estrategicamente motivado, mas provavelmente não a atual invasão completa da Ucrânia, como o editor da Left Review, Tony Woods , atesta em uma entrevista. “Fiquei surpreso com a decisão russa de invadir, e muitos analistas russos estão tentando reinterpretar seus pontos de vista sobre o regime de Putin. Recebi muitas críticas ao regime de Putin nos últimos vinte anos, mas não achei que fosse fundamentalmente irracional. Agressivo, sim. Todos os tipos de outras coisas, com certeza. Mas fundamentalmente irracional, não. E hoje, apesar de existir todas as motivações para isso, essa invasão me parece fundamentalmente irracional.”
O que podemos esperar é um período de militarização dos conflitos inter imperialistas - e com ele uma intensificação da propaganda necessária para alinhar a população. Mas o que mais nós, como esquerdistas ou pacifistas pelo menos, podemos fazer em tais condições?
Construir um movimento contra a guerra
Pode parecer nada, mas a primeira tarefa é não se deixar enganar pela propaganda. Com uma posição consistentemente anti-imperialista, fica entre o bloco de partidários da invasão russa – presentes na esquerda – e o bloco de torcedores pró-imperialismo ocidental, que pressionam esmagadoramente o debate.
A posição da esquerda antimilitarista (não confundir com pacifista) é marginalizada, mas continua sendo a única que pode perdurar: não há guerra, mas guerra de classes. Esta guerra, como qualquer outra das potências imperialistas, não é nossa guerra, não é uma guerra de libertação e socialismo, mas uma em que as pessoas são enviadas para os respectivos interesses das nações capitalistas para matar outras enviadas pela nação oposta.
O slogan que a esquerda deve popularizar é o da revolução. Não há “ordem de paz” no capitalismo que seja mais do que um equilíbrio temporário de poder que perece na guerra sempre que uma das potências concorrentes vê o momento oportuno.
O manifesto da esquerda contra a guerra não é novo, mas é atual:
-“Trabalhadores! mães e pais! viúvas e órfãos! Feridos e aleijados! Para todos vocês que estão sofrendo com a guerra, nós clamamos: através das fronteiras, através dos campos de batalha fumegantes, através das cidades e vilas destruídas, trabalhadores de todos os países, unam-se!"