Quem diria, rock pesado ainda demite professor em São Paulo


Régis é um professor de história do ensino médio com mestrado em sociologia política por uma boa faculdade paulistana. Encontrei-o no centro de São Paulo recentemente, por acaso, quando ele estava em um ponto de ônibus no meio da tarde. 

Apesar de ter pouco mais de 30 anos de idade, é um veterano da cena roqueira de São Paulo e da Galeria do Rock. Conseguiu pagar parte dos estudos com o dinheiro que ganhou como balconista de algumas lojas de CDs.
Expansivo e falante, tinha acabado de sair de uma entrevista de emprego em uma empresa de análise de crédito pessoal. Pela manhã estivera entregando currículo em duas escolas particulares da zona norte da cidade e no dia anterior tinha tentado uma vaga em uma empresa de pesquisa de mercado na avenida Faria Lima, em Pinheiros.
Professor apaixonado e especializado em história da Alemanha antes da Segunda Guerra Mundial e especialista também em história militar da Europa, estava desempregado havia cinco meses, após ser demitido de uma escola particular da zona sul. Motivo da demissão: “inadequação” ao perfil pedagógico da instituição. “Descobriram isso depois de quatro anos…”, ironizou.
Régis foi vítima de preconceito cultural, se é que isso existe. Após insistir muito com a coordenadora pedagógica da área de humanas da escola, finalmente confirmou as suas suspeitas: alguns pais e colegas professores se queixaram à direção dos “hábitos” e dos “gostos excêntricos e perturbadores”.
Roqueiro desde os 10 anos de idade e apaixonado por heavy metal, baterista ocasional, vocalista frustrado e péssimo violonista, era um dos profissionais mais queridos dos alunos, até pelo jeito expansivo e pela inteligência e cultura vasta.
Era consultado para tudo e formou um séquito de admiradores. Apresentou o rock e a literatura de qualidade a boa parte dos estudantes, para desespero do professor de literatura, um quarentão conservador e amante de Beethoven.
Explicava quem eram os Rolling Stones, os Beatles, o Led Zeppelin, os Mutantes, Raul Seixas e Uriah Heep, mas também fazia questão de mostrar Metallica, Slayer, Sodom, Kreator, Overkill, Children of Bodom, Carcass, Nuclear Assault e o que de mais pesado existe no heavy metal. Virou ídolo e parceiro.
E foi justamente o pai de um de seus alunos que levantou a lebre: incomodado com o “barulho insuportável” de algo que se chamava Slayer e que saía do quarto do filho, decidiu “averiguar” o que estava acontecendo. Deparou-se com a coleção completa de CDs da banda de thrash metal norte-americana na cama do garoto, bem como outros álbuns com capas “demoníacas”.
Na inocência, o garoto de 14 anos disse que aquela música tinha sido sugestão do professor Régis. Como o garoto sempre estudou na mesma escola, o pai conhecia outros pais de alunos da mesma turma. “Investigando” a questão, alertou os demais responsáveis sobre a “porcaria” que seus filhos estavam ouvindo e lendo – livros do beatnik Jack Kerouac, biografia de Che Guevara, filosofia grega, Ernest Hemingway, George Orwell e outras coisas muito além de Harry Potter e a série “Crepúsculo”.
As reclamações de pais se tornaram constantes na coordenadoria pedagógica e na direção – e isso porque a escola era tida como relativamente liberal. A gota d’água foi quando apareceu em um sábado a uma festa no colégio no começo do ano, após a final de um torneio de vôlei.
ais à vontade do que o costume – calvo, magro e franzino, vestia-se de forma casual no dia a dia –, apareceu de bermuda e camiseta preta, com estampa da banda inglesa Venom, a criadora do black metal (som pesado com letras geralmente de crítica às religiões e a qualquer igreja ou seita).
O desenho era a capa do álbum “Black Metal”, retratando um demônio. Os mesmos pais descontentes iniciaram uma pressão intensa até conseguir a demissão do professor mais querido por parcela expressiva dos alunos do ensino médio.
Não são raros relatos como esse – o próprio Combate Rock já relatou episódios recentes de intolerância em São Paulo e no interior do Estado contra jovens estudantes que gostam de rock mais pesado.
O que espanta é que isso continue a acontecer, especialmente em escolas privadas caras onde se supõe que exista liberdade de expressão, de pensamento e de criação, bem como combater preconceitos e estimular a discussão de qualquer tema de forma civilizada.
Imaginava-se que esse tipo de coisa ou reação preconceituosa estivesse restrita a rincões do interior do Brasil, locais com pouco acesso a informação ou, mesmo com acesso, houvesse pouco estímulo a atividades culturais fora do padrão conservador-religioso-arcaico-de baixa qualidade que reina por aí.
As trevas também caem sobre a rica, cosmopolita e transbordante de informação São Paulo. E, por incrível que pareça, não é privilégio nosso, pois ocorre da mesma forma no rico Primeiro Mundo, seja nos Estados Unidos ou na Europa.
Autor: Marcelo Moreira
Blog Combate Rock