A DILAPIDAÇÃO COMO MÉTODO: O CASO AMERICANAS

Lojas Americanas, Beto Sicupira, Jorge Paulo Lemann e Marcel Telles (Foto: Divulgação | REUTERS/Ueslei Marcelino)

O economista João Furtado mostra as entranhas do capital no Brasil. Os efeitos da derrocada das Americanas ainda não podem ser corretamente dimensionados, mas serão certamente graves.

O que o caso Americanas revela sobre o capitalismo brasileiro, por João Furtado

Jornal GGN

A derrocada das Americanas é muito mais do que a desmoralização desses 3 financistas que fizeram a glória dos adoradores de dinheiro durante tantos anos. Não houve até agora quem viesse propriamente em defesa dos multibilionários que inspiraram tantos outros financistas e dinheireiros. O Fantástico leu a nota de explicações sem antes ter contado o caso, mas isso é mais uma defesa do grande anunciante do que da operação lesa-acionista.

Os efeitos da derrocada das Americanas ainda não podem ser corretamente dimensionados, mas serão certamente graves. Mais graves porque não serão compartimentalizados: “Se os magnatas que tudo transformaram em ouro com seus toques de gênio deram um golpe desses, com ajuda de executivos, auditorias, instituições de controle, então o sistema está todo corrompido”, pensarão muitos, com fundadas razões.

Se essa reflexão tem sentido, todos os vendedores (para o comércio e para a indústria) ficarão doravante mais cautelosos, divididos entre a necessidade de venderem e o temor de não receberem. Porque um calote pode ser mortal para muitos. As consequências deste caminhão de areia nas engrenagens do sistema econômico podem ser graves ou muito graves. E era tudo o que a economia não precisava neste começo de 2023, onde as turbulências artificiais dos mercados já são fonte suficiente de dúvidas.

A derrocada é grave nos seus efeitos, mas o episódio suscita uma outra reflexão, anunciada lá no título. Afinal, por que estes três magnatas foram incensados por tanto tempo, sem qualquer apuração mais séria pela imprensa, sem qualquer espaço para se pensar a natureza dos seus negócios, da trajetória que eles traziam embutida, dos seus efeitos para a criação de riqueza?

A derrocada das Americanas não começou no mês passado ou no ano passado. Ela é produto de um modelo empresarial parasitário, em que os controladores têm pouco interesse no negócio e estão preocupados sobretudo com os resultados financeiros, mesmo que às custas do negócio e de sua sustentabilidade. É sério engano que os resultados financeiros são o produto da prosperidade dos negócios e os acompanham como indicador inquestionável. Nas hagiografias dos gênios que agora começam a ser escrutinados, tardiamente, sob pressão de credores e minoritários, estava lá na origem a explicação para a compra das Americanas pelos três gênios: só de imóveis próprios a empresa tinha mais do que o seu valor na bolsa. Se desse errado como atividade comercial, se os novos controladores não soubessem gerir a nova atividade, ainda assim seria um bom negócio.

Espera-se que uma empresa seja capaz de combinar uma remuneração adequada dos capitais que foram investidos com um reinvestimento de uma parcela apropriada dos seus lucros. Estes dois destinos dos lucros não podem provocar a ira dos acionistas nem destruir a posição e o valor futuro da empresa. A fórmula típica de quem vê as atividades empresariais de uma perspectiva exclusiva ou predominantemente financista é extrair o máximo da empresa, mesmo que isso sacrifique o futuro.

Se os acionistas ficam eufóricos com dividendos polpudos, o preço das ações eleva-se. Isso é bom ou mau? Depende, porque podem elevar-se por várias razões diferentes. A direção da empresa pode esmagar os preços de compra das suas mercadorias, sufocar os seus funcionários com pressões sobre o seu desempenho e as respectivas metas, recorrer a práticas agressivas com relação aos clientes. Todas elas são eficazes para produzir lucros, mas cada uma delas possui efeitos colaterais. Os fornecedores aceitam as condições impostas, mas ficam satisfeitos? Priorizam doravante esse cliente? Os funcionários da empresa, que sofrem pressões crescentes, dedicar-se-ão sempre com a mesma perspectiva, ou será que vão buscar alternativas? Os clientes também poderão voltar-se progressivamente para as alternativas. As lojas da Americanas já foram um lugar popular, que atraía a atenção de tantas pessoas, de diferentes idades e grupos sociais. Deixaram de ser e há hoje muitos outros lugares que capturam o olhar e o dinheiro das pessoas.

Um pequeno produtor rural sabe que a terra e a plantação precisam ser cuidadas, que isso demanda esforço e dedicação diários, e que a planta não pode ser colhida antes da hora. A padaria e a lavanderia da sua esquina também sabem isso. Mas nenhum deles é um financista, é um produtor e vive do seu trabalho dedicado; não vive de dividendos arrancados da empresa às custas do futuro, nem de operações na bolsa. As ações podem valorizar-se e permitir que valorizações fictícias (ou fraudulentas) sejam ganhos reais de alguns e perdas também reais de outros. Foi esse o caso das lojas que produziram “inconsistências” (o jargão corporativo é sublime) de forma sistemática e produziram balanços para gerarem resultados fictícios, inflarem o preço das ações e permitirem que alguns saíssem com ganhos muito substanciais e outros tivessem perdas gigantescas. Os ganhos dos que venderam as ações antes que a fraude fosse descoberta não são equivalentes às perdas dos que não puderam vender as ações. Há que somar os prejuízos de fornecedores, credores e todos os efeitos negativos sobre a economia, com os efeitos destrutivos sobre as relações comerciais e creditícias e impactos na produção e no emprego. Não é o jogo de bafo de figurinhas habitual, alguém queimou muitas figurinhas dos outros.

Descrita a operação dos financistas, cabe agora explicar a analogia deste caso com o capitalismo brasileiro e a crise em que estamos enredados há quase ½ século. O comando da industrialização no crescimento econômico foi muito forte e bastante funcional durante quase 50 anos, entre a saída da crise de 1929 e os anos 1970. O crescimento foi puxado pela urbanização acelerada e pela implantação de novos setores industriais, mais intensivos em capital, mais “tecnológicos”, com produtividade média mais elevada. Evidentemente, o resultado foi uma elevação muito significativa da produtividade total, dado o peso dos novos setores na composição da equação total.

Produtividade elevada e salários sistematicamente comprimidos produzem lucros elevados. E eles alimentaram os balanços, os dividendos, os investimentos em novos setores, a compra de ativos reais e financeiros, com lucros subtraídos aos setores de origem. Os lucros elevados não alimentaram o reinvestimento e muito menos o investimento para a frente, o investimento em engenharia, desenvolvimento de novos processos e produtos, novas tecnologias, inovações, conquista de mercados externos, internacionalização. Não, os detentores (controladores, acionistas dominantes e seus prepostos) não usaram os recursos gerados para fazerem avançar o sistema produtivo e as capacidades de acumulação das próprias empresas. Preferiram as facilidades do crescimento obeso aos desafios do avanço tecnológico e do crescimento em bases fortemente competitivas.

Grandes grupos brasileiros não avançaram sobre a fronteira da tecnologia e da inovação, preferiram acumular recursos novos: terra, agropecuária, mineração, construção civil e imobiliário, papéis, financismo. Isso deu-se em dois movimentos. Primeiro, transferiram os lucros gerados pelo negócio, esvaziando a capacidade de crescimento das fontes originárias. Depois foram sangrando o próprio capital das empresas, crescendo as atividades que eram inicialmente uma diversificação complementar e atrofiando as próprias empresas industriais. Cortaram no osso, como se diz. É fácil perceber que a rentabilidade da indústria teria que se reduzir enquanto a das demais áreas deveria crescer. Por isso, o que era um movimento autônomo vai se tornando um ciclo vicioso: como não houve investimentos, a rentabilidade cai; como a rentabilidade cai não há mais investimentos.

E uma vez que a indústria, depois de várias etapas do ciclo vicioso, já apresentava insuficiências e deficiências substanciais, agora ela deixava mesmo de ter atratividade, afora casos excepcionais (Embraer ou WEG) e residualmente. Por um lado, havia atividades abençoadas por investimentos antigos e criadores de elevados padrões econômicos e forte inserção nos mercados. O exemplo mais evidente é a celulose e o seu complexo florestal (deixando de lado os custos ambientais e sociais decorrentes). E havia, e ainda há, por outro lado, aqueles setores em que as dimensões dos mercados locais e os custos de transporte justificam a permanência de produção local (cimento, cerveja).

O processo de desindustrialização avançou pari passu com a demanda por novas áreas para a acumulação. Além da migração de capitais para áreas produtivas e financeiras típicas da iniciativa privada, e da venda das empresas nacionais para grandes empresas estrangeiras que não abandonam nenhum mercado, os capitais passaram a demandar crescentemente a transferência de seus capitais para áreas em que tipicamente não atuavam – as privatizações.

Essas privatizações são apresentadas sob a bandeira bem conveniente da eficiência e da produtividade, mas elas são principalmente uma forma de ampliação dos espaços de acumulação livres da competição que tipicamente afeta as áreas industriais, que estão sujeitas ao avanço tecnológico e à competição com os novos polos industriais. Se o fenômeno surgiu nos anos 1980 e começou a tornar-se evidente nos anos 1990, sobretudo após a estabilização e o seu câmbio que favorecia as importações, ele foi sendo agravado pelo avanço da acumulação de capital dos anos 2000. Os capitais em expansão, as exportações de commodities associadas ao prolongado e acelerado crescimento da China, os novos circuitos de crédito e financiamento, a entrada de volumosos fluxos de capital confrontavam-se com a incapacidade de a indústria oferecer espaços promissores. O atraso tornou os investimentos industriais impeditivos. Rodovias, ferrovias, portos, aeroportos, redes de distribuição de gás, energia elétrica, petróleo – todas atividades de rentabilidade institucionalmente construída e, ademais, distantes da concorrência chinesa.

Curiosamente, essas privatizações são mais um duro golpe sobre a indústria, com efeitos incidentes também sobre o poder de compra das famílias. Historicamente, desde pelo menos os anos 1950, o setor produtivo estatal cumpriu diversos papéis relevantes, entre eles o de assegurar externalidades positivas à acumulação privada do setor industrial, na forma de preços submetidos a uma política de modicidade. A privatização colocou uma pá de cal nessa política, com efeitos desastrosos sobre a rentabilidade industrial (caso mais evidente é o dos eletrointensivos, como o alumínio) e o poder de compra das famílias. Foi mais um duro golpe sobre a indústria, neste caso advindo dos efeitos de segunda ordem da fuga e promoção da privatização, encerrando as externalidades do setor produtivo estatal.

O avanço em direção às fronteiras da terra, da mineração e dos recursos naturais (incluindo a energia) dá-se tanto por meio de empreendimentos extraordinariamente intensivos em capital (como os novos projetos da Vale, por exemplo em Parauapebas) como por meio das formas abjetas de devastação das florestas e de depredação dos territórios, visíveis na sucessão de tragédias que culminou nesta semana com as imagens indescritíveis do povo Yanomami.

Esta leitura da fraude das Americanas e o seu paralelo com a derrocada da indústria brasileira e os movimentos do capital que a complementam não deve ser lida como um movimento irreversível. A indústria brasileira subsiste, encolhida e fragilizada, com umas poucas ilhas de excelência, insuficientes para a tarefa que o desenvolvimento e o provimento de bens e serviços para o consumo impõe. Mas há muito a ser feito. E a tarefa incontornável consiste em reverter a natureza estéril ou mesmo parasitária da acumulação, que punciona lucros de lojas para uma expansão global ou da indústria para a aquisição de ativos.

João Furtado, economista
Fonte: Jornal GGN