O INCÊNDIO NO RIO QUE ESPALHOU CINZAS EM MEU CORAÇÃO LITERÁRIO



Poucas pessoas do meu círculo atual sabem, mas nos anos 90 tive um sebo/livraria no Rio de Janeiro. Era uma época difícil e a feliz solução foi trabalhar com algo que sempre amei.

Livros.

Portanto, tenho uma ligação com livrarias que vai além do intelectual e cultural, atingindo totalmente o meu emocional.

Meus sebos ficavam na rua São Clemente em frente ao Cine Estação Botafogo, na UERJ e na UniRio, que ficava na Urca e na época o Pinguelli Rosa era figura proeminente na Reitoria. E salvo engano, foi mesmo o Reitor da nobre instituição.

Minha livraria, a Orelha de Papel (era sua alcunha, quase uma entidade viva), possuia uma carteira de mais de 6 mil livros usados, raros, antigos e históricos. Vendia livros novos também, principalmente os que eram necessários as disciplinas das faculdades.

Para meu prazer, foi uma época profícua em títulos literários e que eu, ávidamente devorava em 3 dias no máximo. Muitas belas recordações, amores e amizades inesquecíveis.

Para minha infelicidade, todas essas lembranças foram reavivadas em minha memória quando acordei hoje pela manhã. Infelicidade, porque as lembranças foram reavivadas por uma das notícias mais tristes que tive nos últimos tempos, depois do falecimento de minha genitora no dia 26 de março deste ano e do incêndio do Museu Nacional (a ordem é organizada pela importância do evento e não pela cronologia).

A livraria Belle Époque, tradicional livraria e sebo do Méier, na zona norte da capital fluminense, sofreu um incêndio na noite desta quinta-feira (21/7), em que tragicamente foram consumidos pelas impiedosas chamas, milhares de títulos valiosíssimos e raros.

A livraria que visitei em 2014 quando retornei a cidade, é reduto de escritores periféricos no Rio e espaço de encontros literários e feiras.

Ninguém ficou ferido. Somente os nossos corações.

As chamas que queimaram dez mil livros, discos, cds e antiguidades foram registradas pelo livreiro Ivan Costa, 41, proprietário do espaço, em um vídeo postado nas redes sociais.

"Acabou tudo. Pegou fogo. Meu sonho acabou", disse, aos prantos, ao filmar o incêndio. "É uma dor gigante. Queimou um sonho para mim. Estou com a face inchada de tanto chorar", afirmou à reportagem, na madrugada desta sexta (22).

Entre as antiguidades destruídas estão bilhetes da época da transição do trem a vapor para o trem elétrico, um fato histórico para o subúrbio carioca.

Foram queimados, entre outros, exemplares sobre críticas e estudos literários, alguns deles dedicados ao escritor Machado de Assis, uma espécie de símbolo da Belle Époque.

Em 2020, a foto de um anúncio da livraria foi compartilhada por milhares de pessoas: "Temos Machado de Assis proibidão", dizia o texto em um quadro na entrada do estabelecimento. Era uma ironia à tentativa da Secretaria de Educação de Rondônia de recolher livros de escolas públicas por considerá-los inadequados para crianças e adolescentes. Entre os autores que faziam parte da lista proibida estava Machado de Assis.

Não dá para negar que passou pela minha cabeça, e talvez de muitos outros amantes da literatura, o fato de que o incêndio tivesse sido criminoso, em tempos que tudo que é ligado a cultura é alvo da sanha e da violência bolsonarista, e claro, tinha uma placa com o nome de Marielle bem na frente. 

Mas Ivan acredita que o fogo começou na fiação, pois na quinta um ventilador queimou, o que leva à suspeita de que havia algum problema nas instalações elétricas.

O destino quando trágico, em muitas vezes é inexplicável e de difícil compreensão.

Inevitável me perguntar, com um sentimento de fatalidade e tristeza, porquê em época de desvalorização dos livros no Brasil e superestimação dos clubes de tiros, uma realidade que já tem gerado muita violência, a fatalidade escolhe devorar justamente uma (maravilhosa e simplesmente única) livraria, até restar somente cinzas.

Que a restauração da livraria Belle Époque seja emblemática em tempos atuais, seja significativa, seja simbolizando os bons tempos que serão restaurados, ainda melhores, na vida do povo brasileiro.